Art Critic

"ViISGRAAT", 2015 - Texto de MARIA JOÃO FERNANDES

Texto presente no catálogo da exposição na galeria António Prates

**LUZ DA NOITE **

A CRIAÇÃO DE NÁDIA DUVALL

“A arte é um sonho sonhado pelo artista”
*Anton Ehrenzweig

“Num lugar onde a sombra é gémea
do fogo irrevelado”**
*Herberto Helder

Em muitos anos da minha já longa carreira de crítica de arte, na minha visitação de algumas capitais da arte do mundo, Nova Iorque, Londres, Paris, Madrid, Barcelona, Atenas, Bruxelas, Amsterdão e seus grandes museus, a Ocidente, e a Oriente passando por Macau e pela China, no labirinto da minha escrita alimentada pelas correntes artísticas que marcaram o século XX e pelos seus Mestres tive a oportunidade e o privilégio de um diálogo pessoal com grandes artistas como Tàpies considerado durante a última fase da sua existência como o maior pintor vivo, António Saura, Cícero Dias, Erró e entre nós com Júlio Resende, Cargaleiro, Nadir Afonso ou Júlio Pomar, entre muitos outros. Edificando o Museu Imaginário das formas, na esteira de Malraux, das criaturas e das cores, das linhas de uma realidade alternativa ao desencanto quotidiano, a realidade imaginária, o horizonte encantado da criação. Mergulhando os abismos do inconsciente em busca das suas leis, da sua ordem secreta, escutando “as vozes do silêncio” para as transformar no caudal luminoso e numinoso da palavra.
Raras vezes neste longo périplo me deparei com a surpresa, a originalidade, a força criativa e a autenticidade pulsional do percurso da jovem Nádia Duvall. A algumas das suas referências: Yves Klein (a implicação do corpo, Rothko (misticismo e espiritualidade), Pollock (gestualidade e pulsão) e Helena Almeida (a componente mental, conceptual) eu acrescento as que de imediato me ocorreram: Tàpies, Frida Khalo. Tàpies inventou em meados dos anos 50, a escrita sobre o muro e uma nova visão da matéria e dos objetos do quotidiano. Nádia Duvall cria agora uma escrita sobre a água e nascida da água e uma matéria plástica para expressar e fixar os seus gestos, pois aquela que herdou de séculos de tradição a Ocidente não a satisfaz, não corresponde à sua necessidade de achar um equivalente dos seus subterrâneos impulsos e luminosas gestações. Nenhuma tinta saída do tubo, nenhum lápis fabricado lhe serve ou basta, simplesmente porque aquilo que persegue, as suas obsessões mais antigas sem equivalente no mundo visível e sensível aguardam para vir à tona da consciência, a conjunção alquímica do espírito, o seu, o do mundo e o de uma matéria que ainda não existe. Que vai depender de uma celebração e de uma gestação envolvendo a luz, o espaço, as sombras, o seu corpo, uma pele de tinta que ela própria foi produzindo ao longo dos anos, a magia das cores, os seus véus, o seu mistério. E a água, mater e magister de uma “obra ao negro”, de uma alquimia com diversas fases, da qual adivinhamos a calcinação, a destruição das diferenças, uma negritude que é a da noite da alma e a da noite do mundo, a solução na água purificadora e uma nova solidificação (rubedo), fase da transformação da matéria, trazendo consigo a união dos opostos, “a coexistência pacífica dos contrários” e enfim aquela que se anuncia, em marcha ocultamente, da sublimação, “que corresponde ao ouro, cor do sol, plenitude do ser, calor e luz.” (1)
A filósofa poeta espanhola María Zambrano descreve a alquimia como “o afã de transmutar a matéria inerte ou de extrair o princípio puro e ativo nela sepultado, participando humanamente da criação” (2). A analogia com um processo alquímico está implícita na arte de Nádia Duvall, na transformação sofrida no processo de criação de uma matéria nova, a partir da dissolução e da solidificação com a mediação da água e seu simbolismo. Água ambivalente, impura e pura de que “umas gotas bastam para purificar um mundo”, nas palavras de Gaston Bachelard citado por Gilbert Durand que a define como “grande e arquetipal imagem psicológica” (3). Água genitrix, equivalente do mar cósmico original onde dormem todas as potencialidades da vida, água profunda do inconsciente na sua demanda de mais luz e de uma alegria que é o secreto halo do Paraíso. Essa fusão primeira no seio de uma unidade e de uma luz intactas, a água a esconde e a guarda preciosamente. Mistério insondável do espírito, da sua origem e justificação. Foram precisos muitos séculos e muitas eras de uma evolução caudalosa, desde o primeiro gesto de Lascaux, passando pelo misticismo medieval, pela grande ambição clássica de imitar a ordem e o equilíbrio da natureza, pelo culto do mistério e do inacessível do Maneirismo, pelo esplendor em turbilhão do Barroco, pela deambulação onírica do Romantismo e do Simbolismo, pela convulsa apropriação da realidade plástica e da própria realidade, exterior e interior, do século XX, na sua progressiva conquista da liberdade de expressão. Foi preciso passar pela ousadia de Breton ao invocar os abismos do espírito humano, e pela de Duchamp, ao reivindicar o poder do acaso e do objeto achado, o poder criativo da própria realidade, foram necessários o gesto explosivo de Pollock, a depuração da realidade na abstração e a sua negação na explosão de figurações e de novas figurações, a arte bruta dos loucos e dos alienados, foi necessário este labirinto milenar com as suas perdas e revelações.
Hoje ergue-se com fulgor, uma nova linguagem plástica que tudo nega e tudo reinventa a partir da matéria-prima da água, como se se tratasse da primeira manhã. Reivindicando o poder da criação do espírito faz aparentemente tábua rasa de tudo o que precedeu esta aventura, mas que é o húmus que permitiu a sua floração.
Nádia Duvall com a sua experiência de sofrimento, os seus diários de esquissos e retratos, os seus perturbadores heterónimos, a sua biografia invulgar, é irmã de Frida Khalo, não apenas por isso, mas sobretudo porque foi capaz de criar uma arte no feminino que é a expressão mais profunda desse mesmo feminino, do seu poder de dar à luz, de arrancar às trevas o sono da matéria transformando-a na exaltante aventura do espírito.
Evocando no seu trabalho a série dos “vernizes” de Tàpies integrada na exposição que comissariei em 1991 na Fundação de Serralves e na Fundação Gulbenkian ou Frida Khalo, a artista é sobretudo ela mesma, no seu jovem afã de criar uma realidade à sua imagem, visto que todas as suas obras são uma espécie de auto-retratos, mas estas imagens não são mais do que emanações secretas da interioridade humana, a celebração de uma ferida, de uma cisão cuja unidade se pretende secretamente refazer.
A delgada película de tinta no contacto com a água (de uma piscina que colocou no seu atelier e que considera o verdadeiro “útero”na origem da gestação das suas obras), ganha matizes e sombras para se fixar sobre o vidro, seu suporte, onde posteriormente se integram as formas duras e invasoras. A artista por meias palavras ou meias frases, como se a discursividade fosse perigosamente equívoca, fala no “desejo”, desejo de unir o consciente e o inconsciente separados por essa transparente parede de uma matéria arrancada ao nada. Metáfora da pele de um corpo presente e ausente, insustentável leveza que apela ao devir da consciência.
O seu próprio corpo está envolvido neste processo, na manipulação dos materiais, complexa e árdua, na relação com a água que permite fixar as imagens “infixáveis”. E presente também como fonte de todas as metáforas, como um casulo de sombras que aguardasse o voo da mariposa dos sonhos. Corpo de dor, de incisões, atravessado por formas que rasgam a sua inocência, a sua lisura, a sua beleza. Formas esculpidas intimamente azuis que transformam estas peças em pinturas/objeto num sábio jogo de opacidades e de transparências com veios e delicadas nuances de cor, aberturas e rasgões, marcas na “pele” que se estende e vibra sobre o suporte do vidro nele acordando a vida. Uma vida segunda, inusitada e palpável carícia dos sentidos da alma, um olhar para dentro vindo da noite secreta do espírito, um escutar das sombras, um pressentir do azul onírico do sonho, “centelha divina enterrada na escuridão” (4), índice da luz mais oculta, perfume da ausência que precede o esplendor.
“Visgraat” (espinha de peixe), é o título desta série. Nádia Duvall achou numa língua estranha à sua, o holandês, os sons ásperos que correspondem à sua expressão da dor, à sua procura de uma matéria para o sofrimento e a perplexidade. Espinha de peixe, coluna vertebral, invasora, sempre com uma posição central e vertical, espécie de eixo fundador deste noturno universo. No plano do mito o eixo do mundo, “axis mundi”, dá um sentido ao espaço permitindo a relação com o Sagrado (5). Não por acaso a artista descobriu no reino marítimo esta soberba metáfora que lhe foi ditada pelas leis ocultas da gramática do inconsciente, nas suas estruturas mais profundas estudadas por Ehrenzweig (6). Neste espaço noturno e aparentemente caótico, a espinha de peixe é não o anti “axis mundi”, como poderia parecer à primeira vista, mas o eixo cósmico, a verdadeira coluna vertebral do oceano onírico e profundo dos sonhos. Eixo que simbolicamente, ligando o humano à natureza, lhe garante a não submersão no Caos da consciência que perdeu a chave do conhecimento simbólico e salvífico de que nos nossos dias, a arte, para além da religião, é a única depositária. Este eixo poderoso e comovente, no enigma e no acaso do seu nascimento e da sua forma, contém uma proposta da própria natureza, de decifração do sentido da trajetória humana, de que ela possui a chave, só transmissível no silêncio ou na música e na poesia latentes nestas criações.
Grandes criações, emanações, do inconsciente, do corpo, do corpo do inconsciente, do inconsciente do corpo. E criação de um novo corpo, inconsciente feito matéria, matéria imaterial, pura evanescência, dealbar amoroso do espírito que deseja a sua metade, na consciência de uma fusão anunciada do conhecimento, índice de uma demanda que é a de todo o Ocidente, “partilhado entre um pólo extático-inspirado e um pólo racional-consciente” (7) . Para nos deixar fruir o brilho destas imagens perturbadoras, nascidas do limbo de todos os desejos.
Da penumbra regressam as sombras de um lugar nunca visto e nunca sentido antes da alquímica e amorosa fusão de sonhos, matérias e de um fogo oculto nos subterrâneos da água. Membranas caprichosas, véus de anjos caídos de um paraíso em migração rumo aos infinitos devaneios da noite.
De um lago, ou de um oceano de vibrações ténues, tão ténues como o silêncio, mas um silêncio frágil e iluminado pelos sons de um piano tocando em surdina, rumorejando a violência de um sofrimento antigo e que sobe pelas veias, ascende ao sangue e se transforma num vulcão lânguido, a espraiar-se nos veios da água, asas de borboletas nascidas do vento e dos suspiros da música. Asas, crescendo, crescentes de luas submersas, rasgando as trevas na audácia de colunas, não de templos, mas de um tempo só interior, anterior à luz e que a anuncia. Como uma aurora prometida, azul murmúrio entre escombros, como se tudo fosse possível ainda, na leve fimbria transparente de um manto sem nome, substância alada de uma cortina que esconde e revela o absoluto ou o nada.
De mistério em mistério, de camada em camada, de sombra em sonho, a luz da melancolia acende as trevas em cintilações obscuras, como suspiros ou gritos. Retratos, pura alquimia interior, no casamento da cor, da forma e de superfícies mínimas ou grandiosas, retratos sobre o vidro, frágeis e densos, feridas, labirintos mágicos, íntimos fogos crepitando sussurros, mágoas e maravilhas, da noite, da ausência, labirintos como cabelos de uma árvore que cresceu para dentro das entranhas da terra, os seus fios balbuciando as palavras de um alfabeto sem equivalente algum.
Ouro, espasmos no vazio, lilases, flores da ausência e uma púrpura aurora boreal da alma.
A alma revelando a sua sombra, a sua luz magicamente oculta nos véus dos passos que se perderam há muito em florestas virgens e inexploradas. Florestas do nosso descontentamento, de uma civilização que negou a sua véspera de água.
Da escuridão, do elo com a música, do silêncio rasgado pelos relâmpagos da noite ancestral, navegam estas asas, estas membranas violentadas pelo sofrimento e a mágoa de estar vivo. Navegam ao vento do espaço sideral, onde os cometas somos nós, flores sem jardim. Novo espaço, nova matéria, nova linguagem para uma nova expressão do humano. Nenhum psicologismo consegue explicar este percurso, feito à escala de um meio maior do que o nosso. Trata-se de reinventar o humano, uma vez mais, de esboçar uma nova trajetória, a partir do sofrimento que nascer sempre implica, marca de todo o grande artista, como Roland Penrose escreveu a propósito de Tàpies. Um humano em sintonia com o Cosmos, nascido do ventre das metáforas da água, em migração para outros territórios do espírito em eclipse, promessa do ouro, de um sol, seu verdadeiro destino.
Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain, «Alchimie », Dictionnaire des Symboles, Édition Seghers, Paris, 1971, p. 36.
Zambrano, María, O Sonho Criador, Editora Assírio&Alvim, Lisboa, 2006, p. 46.
Bachelard, Gaston, citado por Durand, Gilbert, Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, Édition Bordas, Paris, 1973, p.194.
Jung, Carl, Gustav, « A Luz da Escuridão », Estudos Alquímicos, Editora Vozes, Petrópolis, 2003, p. 162.
Eliade, Mircea, O Sagrado e o Profano, Edição Livros do Brasil, Lisboa, p.50.
Ehrenzweig, Anton, L’Ordre Caché de l’Art, Éditions Gallimard, Paris, 1974.
Agamben, Giorgio, Stanze, Éditions Payot&Rivages, Poche, Paris 1998, p.10.

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**"FALLING TREES", 2012 - um texto de PAULO VIVEIROS
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Presente no catálogo da exposição da Galeria Valbom

***Na Floresta Negra de Nádia Duvall — a esquizofrenia da imagem


"Pintar é um estado de espírito... auto-descoberta. Cada bom artista pinta o que ele é."
Jackson Pollock

A citação em epígrafe podia ser da Nádia Duvall. Também, muitas de outras célebres frases que conhecemos de Jackson Pollock, gravadas em entrevistas para a rádio. Com isso não quero afirmar que a obra de Nádia Duvall seja herdeira da "linguagem" de Pollock, no sentido que Greenberg a formulou, mas alguns temas transitaram, nem que seja pela forma como Nádia - e o tempo - marcou uma diferença, como a produção de imagens num plano horizontal (na piscina-útero) e a sua exposição vertical clássica (imagem pendurada na parede).
As imagens na parede criam um efeito de múltiplas imagens, porque o suporte de rede confere às membranas um efeito simultâneo de relevo e profundidade. Perante isto uma membrana forma várias imagens consoante a incidência da luz: nas diferentes tonalidades e brilho à superfície e nas sombras em profundidade que se projectam na parede através do tecido do suporte. Estamos perante uma esquizofrenia da imagem. E o século XX é aquele que se presta a uma história clínica das imagens: desde a histeria da afirmação da pintura enquanto autónoma da representação nas primeiras vanguardas, até à epilepsia actual (da cintilação aos efeitos visuais).
Nádia Duvall criou uma técnica singular que lhe permite arrancar as imagens das entranhas, quase visceral. Esse carácter orgânico assenta no tema de fundo desta série do “Vestido Negro” como uma forma de revelação do inconsciente. As membranas são esses pedaços que o inconsciente solta, mas também restos de placentas. Como Pollock dizia: "new needs need new techniques... The modern painter cannot express his age (...) in the old forms of the Renaissance... The modern painter is living in a mechanical age... working and expressing an inner world - in other words, expressing the energy, the motion, and other inner forms”. Há no trabalho de Nádia Duvall uma energia interna que expulsa imagens, que uma vez expostas à luz criam uma atmosfera estranha como é o desta floresta negra que podemos encontrar nesta exposição. Esse caminho que a artista intituitivamente descobriu quando mudou o suporte das membranas (da tela ao tecido), é a descoberta do local ideal onde as membranas podem repousar para nos atiçar a consciência. Que local é este, misterioso, afastado do glamour da luz, em que esta “exposição se esconde”?
A geração de Pollock foi vista como socialmente desequilibrada aos padrões da moral conservadora norte-americana, um conjunto de artistas que teve problemas de alcoolismo, que não tiveram filhos, que consultavam regularmente psiquiatras, que teve casos de suicídio, inverte-se agora numa geração sem pais, à deriva por um universo denso e negro e que não esconde mais isso. A exposição de Nádia Duvall é uma alegoria que expõe cruamente o inconsciente, que é o contracampo de uma sociedade higiénica que se refugia na superfície do design. Aqui a atmosfera é pesada, húmida, aterradora como nos contos dos irmãos Grimm.
... E quando se atravessa a ponte todos os fantasmas vêm ao nosso encontro.

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"SEM TITULO", 2008 - um texto de Mario Caeiro
Exposição na VPF ROCK GALLERY/ Plataforma Revolver

Gravidade e graça

Even at this very moment, action, work, love, thought, the search for truth and beauty are creating

certain realities which transcend the transitory nature of the individual. And the fact that this

assertion has become trivial, that it has been put to use too often – sometimes to worst kind of ends

– does not mean that it has stopped being true.

Henri Lefèbvre, Critique of Everyday Life [1947]

Para Lefèbvre1, cabe aos seres modernos de cada tempo procurar dar o passo seguinte, aspirar ao
não realizado, ao porvir. São seres insatisfeitos com a sua condição contemporânea [que porém não
rejeitam], mas que de forma mais ou menos consciente derramam sobre a experiência quotidiana
dessa condição, contingente, um desejo de superação, crítica e radical. Na Arte dita Pública, esse é
um traço fundamental que legitima o acontecimento como categoria filosófica, nomeadamente por
via de acções de autoria partilhada e processos sociais colaborativos. Estéticas relacionais. Numa
arte que permanece no ateliê ou na galeria, no circuito privado, como acontece com Nádia Duvall,
tal superação corresponde a um processo de evolução individual, ao ritmo dos avanços e dos recuos
de um conhecimento progressivo dos próprios parâmetros e limites da acção, onde a ânsia pela
liberdade e o significado se expressa numa relação tendencialmente emancipatória face à matéria
plástica. A busca de uma graça [partilhável].
Perante esta primeira exposição individual de Nádia Duvall, temos o privilégio de ver desenrolar-se
à nossa frente um destino, duro e inevitável como todos os destinos. A Nádia coube acontecer-lhe
empreender um projecto artístico de refundação do prazer da plasticidade [Plastik, na língua de
Joseph Beuys]. Digo ‘acontecer-lhe’ porque, como adivinhará quem com ela priva, trata-se de um
conjunto de trabalhos que, sendo determinados por uma mente e uma mão, um corpo, em muitos
momentos de forma deliberada e precisa – Nádia é praticante avançada de artes marciais –, não
deixam de pressupor, ao mesmo tempo e em tensão criativa, uma dimensão de pulsão, automatismo,
de inconsciência. Isso torna-los-á uma forma dissimulada de misticismo. Canais de uma
subjectividade transpessoal.
Na ESAD.CR, onde a artista acaba de concluir os seus estudos, o seu trabalho é há muito um caso
especial de convicção [obsessão?], intemperança [autodestrutividade?], beleza [estética?]. As suas
telas de grande formato pressupõem um processo de literal habitação da matéria plástica pelo corpo
da artista, implicando o envolvimento de todo esse corpo, como máquina, no processo de
apropriação da praxis pictórica. Trata-se de assegurar ao acto criativo uma processualidade em que
a concentração mental e o movimento controlado se aliam ao idealismo de juventude para instaurar
uma experiência total violenta, que abdica de comentários e contextualizações. Uma evidência que
traduz uma energia com elevado grau de pureza, sobranceria.
Na ESAD.CR já tivémos, professores e colegas, o contacto quotidiano com esta visualidade
orgânica, configurações em que a plasticidade do gesto artístico é resultado de um ritual solitário –
de espectacularidade mais pressentida que exposta [apesar das várias performances que a artista
regularmente propõe]. Mas se a processualidade própria desta pintura está diante dos nossos olhos,
enquanto dança do gesto, é acima de tudo pelo resultado final, como pintura objectificada, que a
artista se interessa. Mais que a partilha da sua técnica [cujos aspectos experimentais, determinantes,
relativos às reacções químicas, esconde deliberadamente], é uma coisa que está ali, que se impõe,
para ser fruida esteticamente por meio de um dispositivo específico, o do género pictórico.
Porque não se trata da proposição de um ‘mundo próprio’ com significados deliberados, o gesto
artístico é em certa medida o de uma desdiferenciação perante a ideia de autoria [e de autonomia,
enquanto expressão de interioridade], e por isso estamos perante um processo para o qual o
virtuosismo não está em qualquer tipo de técnica académica, mas na convicção, na necessidade e na
entrega de um corpo a um projecto de arte. À investigação subjacente a esse projecto. Mas é
inerente ao trabalho, o qual se mantêm a grande distância da busca da empatia, também, e talvez por
isso mesmo, um noção política de publicidade [no sentido de Arendt], a afirmação em crescendo de
uma identidade individual através da apropriação do conceito de arte – algures entre a insconsciente
[e despolitizada] ‘mão’ de Pollock e a cerebral consistência intelectual de um Klein [ambos
reconhecidos por Nádia como referências].
Perante as pinturas de Nádia, que habitam um território tão vago quanto objectivo, cabe ao
espectador procurar e encontrar o seu lugar. Esse lugar pode ancorar-se em diferentes paradigmas da
recepção:
– para os advogados da processualidade, está lá o gesto, a performatividade, um dispositivo de
emancipação individual, um sentido de missão;
– para os adeptos do Belo como objectificação do acto criativo, não é fácil ficar indiferente a uma
gramática de acasos que tanto evoca o surrealismo como o dripping;
– para os amantes do minimalismo, bastaria surpreender na aparente aleatoriedade das
configurações fixadas uma natureza em processo, a experiência do total [acentuada pela concisão
cromática];
– para os defensores da transversalidade, é possível reconhecer no discurso desta criadora abertura
para, no futuro próximo, alargar o âmbito do seu trabalho [Duvall prevê para breve recorrer à
colaboração de cientistas na área da Física e da Química]...
Em qualquer uma destas hipotéticas posições-tipo perante a obra de Nádia Duvall, releve-se porém
um valor comum, o da Verdade. Por via da problematização da relação entre corpo e obra, mente e
forma, do carácter obstinado da busca e do rigor documental que a artista faz questão de incluir no
seu programa, tal verdade advém de um sentido do valor da liberdade. Um valor cultural que, na sua
aparente autoconfinação – aos materiais e habitus da Pintura – se torna por isso mesmo mais vivida
e apropriada. A Verdade como Poiesis, uma livre poética do fazer, em imponderabilidade, e que se
apresenta como ambição e entrega, ostentando uma dimensão terapêutica [ainda Beuys], mas por
enquanto ainda não se encontra mediada pela serenidade estóica. Esta é uma arte que se esconde e
revela ao mesmo tempo, convidando o público a presenciá-la como peculiar expressão do efémero.
Um acontecimento, privado, mas por todos.